O problema não foi falta de tempo, pois estou de férias há virtualmente uma semana. Temo que se me tenha interpelado uma incontrolável e deprimente falta de vontade, para tudo e para todos, e, no seguimento da emoção aqui inerente, proponho-vos a leitura de mais um livro.
Escrevo hoje por três razões, sendo a primeira bastante óbvia: já não publico nada neste Café de Saco há muito tempo; tive, não muito longe no tempo, em minha casa à noite, uma conversa com a minha Amiga, um ditame das nossas tertúlias nocturnas acompanhadas por chá ou gin tónico, precisamente sobre esta minha quebra súbita na rotina deste blogue e ela, sempre útil e de perfil destro ou mesmo xistarca, lá ajudou à ascensão do meu íntimo emocional; e a última razão deve-se ao facto de ontem, no fim de jantar, ter ido com uns amigos à abertura da nova gelataria e creperia de Vale de Cambra, na prometida cumplicidade entre o crescimento exponencial da minha barriga e a minha desmedida gulodice (que Deus me ajude!), e, enquanto esperava, uma leitora deste blogue, sem se aperceber, sensibilizou-me e alegrou-me muitíssimo pela sua breve, mas cuidada e atenciosa, conversa sobre este espaço virtual. Se ler isto, cara leitora, quero agradecer-lhe a simpatia. Acho que era disso que eu estava a precisar.
Agora, vamos ao livro! "A menina dentro da cereja", de Álvaro Manuel Machado, é, suponho, uma novela bastante complexa. Creio que, acima de tudo, caracteriza-se por uma escrita honesta, ou pelo menos os personagens assim o são, pois, por exemplo, para uma mãe dizer "na verdade, confesso, eu nunca me senti mãe exemplar, aquela mãe-galinha, para quem os filhos são tudo ou pelo menos o mais importante no mundo ou na vida" (página 77), expõe o quão absorta, frágil e deprimida a personagem estava, e assim o disse, sem preconceitos.
"Lentamente, muito lentamente" (página 24), a história se vai desfiando, sem pressas e não muito descritiva, apenas com os pormenores necessários para percebermos a disfuncionalidade de uma família portuense que se ancorou na nebulosa e húmida Foz, mas que, com o avançar dos anos, se vê separada entre vários países, por razões redundantes e explicadas apenas pelo carácter sinistro da família.
Carne podre impregnada de vermes dentro do frigorífico, quem nunca teve? Fantasias sexuais com membros do mesmo sexo admitindo, porém, não se ser homossexual, que nunca as sonhou? Espetar um belo par de cornos ao marido que está no Porto com um amigo lisboeta, quem nunca os espetou? Perpetrar brincadeiras sexuais abusivas à prima, numa parada de puro incesto, quem nunca? Bem, eu certamente nunca, nunca, nunca e nunca! Mas ao ler este livro fiquei com a sensação de que são coisas bastante triviais no seio de famílias portuguesas, embora eu saiba que não será bem assim.
Adoro um bom livro que, de certa forma, me incomode. Talvez desperte em nós o risinho maroto interior que, fechado no baú coberto de teias-de-aranha no nosso cérebro, se abre enferrujado e liberta-se, apenas para connosco, com o pensamento "e se...?" Por vezes, a leitura consegue desprender-nos do politicamente, do moralmente e do religiosamente correcto e acaba, por fim, por nos instruir apenas o correcto.
Não foi Deus, como sabemos, que nos criou à sua imagem, mas sim nós que o criámos a ele. Quando ele morre em nós, apenas teremos partido um espelho. (página 61) - Vergílio Ferreira
Como considero a interpretação do título, conjuntamente com o conteúdo da obra, deveras importante, não explicarei o porquê de "A menina dentro da cereja", pois, como costumo dizer, destrói imediatamente um dos propósitos da leitura.
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