30 de janeiro de 2017

A Pequena História do Pavão sem Cauda

   Recebi, ainda hoje, uma carta da Professora Florbela Plântula, mulher do Professor Pedro Pedra, com um conteúdo deveras interessante. Ela costuma estar ausente da Floresta do Palacete uma vez por ano, durante dois ou três meses, normalmente por compromissos investigativos em florestas tropicais do Oriente, muito distantes das temperadas.
   Era já habitual enviar cartas ao seu amado, onde descrevia os seus achados botânicos com letras de saudade. Não era, no entanto, comum enviar-me cartas a mim, embora o tivesse feito por quatro vezes em dez anos. Mas, o mais curioso, foi o facto de esta carta, que recebi hoje, não contemplar exemplares secos e prensados das mais exóticas flores, como havia sido até à data, senão uma pequena história sobre uma situação que se passou e que ela havia presenciado e, para meu espanto, algo mais.

   Nos grandes Jardins Reais de uma antiga mansão, onde a Professora Florbela Plântula pernoitava depois das suas investigações científicas, vivia um pequeno grupo de pavões, do qual fazia parte um grande e nobre macho, de pescoço e peito azul-iridescentes, patas esguias ao estilo de duas varas de prata com uns grandes esporões cada, uma delicada crista de brilhos cerúleos e a mais bela e longa cauda de penas que alguém havia visto.
   Esse grande pavão, o Duque Durázio, era sempre uma presença imponente naqueles belíssimos jardins de gardénias cheirosas, rododendros frondosos, caneleiras-do-Ceilão, palmeiras e sândalos floridos.
   Todas as manhãs, o Duque Durázio saía da densa vegetação, onde dormia, e dirigia-se para os relvados abertos, mesmo em frente à mansão. Pelo caminho, e na sua típica marcha compassada e altiva, de cabeça pretensiosamente erguida, peito projectado para a frente, olhos semi-cerrados e com as longas e majestosas penas da cauda a arrastarem-se pelo chão - como se de um manto se tratasse -, ia cumprimentando as pequenas criaturas pelas quais passava, apenas com um subtil meneio. Aliás, para o Duque Durázio, todas as criaturas lhe eram inferiores: existem rumores de que cumprimenta os colossais paquidermes da mesma forma como cumprimenta as humildes rolas, ou, até, os pequenos roedores.
   Quando chegava aos relvados abertos, vociferava para todos os lados, com uma voz estridente e projectada, com o intuito de chamar a atenção.
   - Olhai! Olhai! - dizia bem alto. - Olhai! Olhai! - abria ligeiramente as asas para baixo, mostrando padrões ocre e flectindo ligeiramente as elegantes patas. - Olhai! Olhai! - e, por fim, quando obtinha as atenções desejadas, abria o seu conspícuo leque de longas e majestosas penas.
   - Olhai! Olhai! Regalem-se com esta visão, pois só eu vos a posso mostrar!
   A verdade é que a sua cauda era, de facto, soberba. Parecia que ninguém se fartava de a admirar. Mas, quanto à atitude... Bem, pode-se dizer que não era aprovada pela maioria.

   Todos os dias, à excepção dos dias chuvosos, o convicto pavão Duque Durázio desenrolava este ritual. E, todos os dias, depois da sua exibição, que deixava as fêmeas de bico caído, aproximava-se dos outros machos, cujas caudas eram mais pequenas e menos exuberantes.
   - Suas amostras de pavões. - dizia-lhes, com displicência. - Vergonhosas penas, as vossas. Não são dignas de se mostrarem nos Jardins Reais.
   Depois de os reprovar, humilhava-os publicamente, numa espécie de competição garantida.
   - Olhai! Olhai! - abria o seu leque junto dos outros machos. - Olhai que miseráveis leques emplumados, os dos outros! - vociferava.
   Os outros machos, cabisbaixos e deprimidos, acabavam sempre por se retirar, tamanha era a arrogância do Duque Durázio. O seu ego parecia ocupar todos os interstícios que sentissem a sua presença, ao ponto de "empurrar" muitas fêmeas para outros locais.

   Houve, no entanto, uma fêmea especial que conquistou o coração do grande pavão.
   O Duque Durázio, porém, nunca deixara as suas exibições exageradas, vaidosas, mas, em vez de, nos tempos em que não as perpetrava, se empoleirar no ponto mais alto da mansão a observar tudo e todos, passava o tempo com a sua fêmea conquistadora, namoriscando, feliz da vida.
   A meio de um qualquer Verão, a fêmea do Duque Durázio fez um ninho e, nele, depositou quatro lindos ovos - a descendência do glorioso Durázio. A dedicada mãe incubou-os durante um mês e, quando eclodiram, o dia foi marcado por uma felicidade inquantificável por parte do pai dos pequenos e ternurentos pavõezinhos. Para o Duque Durázio, a partir daquele dia, as gardénias começaram a cheirar melhor, os rododendros a parecerem mais frondosos, as caneleiras-do-Ceilão mais encantadoras, as palmeiras mais altas e os sândalos mais deleitosos. No entanto, como seria de esperar, nem os seus amados filhos - duas pequenas fêmeas e dois pequenos machos - representaram impedimento para os seus habituais pavoneios.

   Um dia, anos mais tarde, já as suas filhas se preparavam para serem mães e os seus filhos para serem pais, o grandioso Duque Durázio, a meio de uma das suas exibições, começou a ouvir algo que o desconcertou veementemente.
   - Olhai! Olhai! - vociferavam os outros pavões machos. - Olhai que pequenos leques têm os filhos do Duque Durázio! Olhai! Olhai!

   O grande pavão apressou-se a fechar o seu leque e, correndo o mais que pôde, com uma expressão preocupada, penetrou pela densa vegetação até chegar ao outro relvado, onde se encontravam os outros pavões machos, incluindo os seus filhos.

   - Olhai! Olhai! - repetiam eles, envergonhando os filhos do inveterado, que acabaram por se retirar, tristes, destroçados, deprimidos.

   O Duque Durázio ficou furioso, estava capaz de cravar os seus afiados esporões naquelas ousadas aves. No entanto, entendeu que isso não traria honra ao seu nome, nem felicidade aos seus filhos. Reflectiu sobre os seus feitos, avaliou os actos dos outros pavões e pensou nos seus pobres filhos, que agora sofriam por um passado incorrecto e alheio às suas existências. Retirou-se discretamente de onde estava e foi ao encontro da sua prole masculina. Tentou reconfortá-los, dizendo-lhes que, com o passar dos anos, as penas das suas caudas acabariam por crescer mais compridas e coloridas. Porém, as vãs tentativas do preocupado pai não lhes trouxeram muito conforto, mas o grande pavão deu conta disso.

   Quando a noite desse indigno dia chegou, o Duque Durázio esgueirou-se, sem que a sua companheira visse, para o galho de uma árvore que se encontrava mais isolada e, durante a escuridão, uma a uma, arrancou todas as suas longas e majestosas penas da cauda, o que o levou a permanecer acordado até à alvorada do dia seguinte. Embrulhou as suas preciosas penas num pano da mais fina das sedas e entregou-o à Professora Florbela Plântula, quando a encontrou a sair da mansão.
   Ao aparecer perante os seus filhos sem uma única pena na cauda, causou, naturalmente, um grande impacto, pois um pavão sem cauda é como um rei sem coroa.
   - Não se preocupem, queridos filhos. Quando os vossos leques estiverem desenvolvidos o suficiente para aplacar as vossas ambições, o meu, com certeza, também estará.

   É claro que, no início, o Duque Durázio foi alvo de chacota. Mas a maior parte das criaturas, especialmente as mais sensíveis e perspicazes, perceberam o "porquê" da decisão do inveterado pavão. E, quando o tempo começou a curar tudo, o Duque Durázio acabou por se tornar numa figura de deferência, mas, desta vez, pelas devidas razões.

Texto e Ilustração por Pedro Pinho e Suárez (Pavo cristatus, pavão-real).


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