Na grande Floresta do Palacete vivem muitas criaturas, como alguns de vós poderão saber. Muitas aves, muitos répteis, muitos anfíbios, muitas plantas e muitos mamíferos, entre os quais toupeiras. Mas, de todas as toupeiras, a mais evidente é o Sr. Pitosga Madrigueira que, depois de ter sido expulso dos amplos campos de uma camponesa, vive agora num terreno arborizado essencialmente por carvalhos, no subsolo - como não poderia deixar de ser -, entre camadas de terra fofa e fértil e manta morta. Poder-se ia dizer, portanto, que o Sr. Pitosga Madrigueira, Madrigueira (apenas) para os mais chegados, vivia feliz no seu novo lar subterrâneo de túneis limpos e intrincados, não obstante a sua expulsão dos terrenos agrícolas. No entanto, apesar de estar, agora, mais em paz no seu actual lar, o motivo que o fez mudar-se foi deveras ilegítimo, já para não falar de uma situação injusta que se sucedeu e que, de certa forma, também a si está ligada.
Por sorte ou acaso, sei perfeitamente do enigmático caso do Sr. Pitosga Madrigueira, pois, aqui há uns dias, houve um jantar em casa do António Espínhola - o ouriço-cacheiro, nosso amigo em comum -, para o qual fomos convidados e onde tudo se revelou.
Era final de Inverno, a floresta estava despida, exceptuando as manchas de árvores de folha perene, e o frio era uma presença imperativa. No entanto, o céu estava limpo e não havia vento, apenas uma leve brisa fresca que competia silenciosamente com os raios de sol: à sombra era um gelo, mas nas clareiras estava uma temperatura agradável, para quem estivesse bem agasalhado, claro.
Até ser hora de me dirigir para casa do António Espínhola, estive em casa do Professor Pedro Pedra, onde lanchei uma grossa fatia de bolo mármore acompanhada de uma aromática cevada. Quando o sol se pôs atrás dos rombos vales a Oeste e a escuridão avançava pelo lusco-fusco afogueado, parti de casa do Professor Pedro Pedra com uma garrafa de tinto de alta qualidade, cortesia do anfitrião, para que a oferecesse ao ouriço Espínhola.
O lar do amigo espinhoso, não muito longe da do Professor, era debaixo de um grande e velho tronco caído. A entrada dava imediatamente lugar a uma grande sala com lareira, criteriosamente iluminada por velas de cera de abelha, onde uma comprida mesa, já posta com pompa e circunstância, era velada por uma imaculada toalha de linho com complexas rendas no perímetro, provavelmente tecida pela Sra Dona Amélia Mitra.
Assim que entrei, fui recebido pelo meu caro amigo Espínhola com um abraço - o que requereu um certo cuidado da minha parte, não fosse picar-me na sua libré pontiaguda -, mas já lá se encontravam dois convidados que me saudaram cordialmente: um grande lagarto-ocelado e um pisco-de-peito-ruivo, os quais bebericavam um Porto cor de sangue em frente à convidativa lareira.
O maravilhoso cheirinho a assados começara a invadir a sala vindo da cozinha, onde o Espínhola se encontrava nos seus afazeres culinários. Nisto, bateram à porta mais dois convidados. Nós, os que estávamos à lareira a conversar, sentados nuns pequenos bancos de madeira, levantámos-nos para os saudar, e o espinhoso anfitrião foi recebê-los à porta: chegara um gineto e um grande sapo de cartola. O primeiro trazia uma cesta com ovos, ainda com casca mas já cozidos, e o segundo trazia uma garrafa com licor de medronhos - ofertas atenciosas como consideração a quem lhes ia proporcionar a tainada.
Depois de receber os simpáticos presentes, o António Espínhola dirigiu o gineto e o sapo até aos restantes convidados, pondo-os à vontade, mesmo antes de voltar para a cozinha para terminar o repasto.
- Falta mais alguém, Espínhola? - indagou o pisco-de-peito-ruivo da sala para a cozinha.
- Sim, falta o Madrigueira. Não deve demorar.
Ficaram todos atónitos com a resposta do anfitrião, pois o Sr. Pitosga Madrigueira não costumava sair de sua casa, era muitíssimo raro, aliás. Mas, após alguns segundos, e porque a humilde toupeira nunca fez mal a ninguém, voltaram todos à conversa como se nada tivesse acontecido - e, de facto, nada aconteceu, foi apenas mais um daqueles típicos momentos de julgamento alheio e de constrangedora troca de olhares.
Poucos minutos depois, ouviu-se alguém a bater à porta com um
pum,
pum,
pum hesitante. Estávamos todos à espera que fosse o Sr. Pitosga Madrigueira e, de facto, era ele. Quando o nosso amigo Espínhola abriu a porta, vislumbrou-se uma gorda toupeira, de pêlo negro e aveludado, que surgiu cautelosamente da escuridão do exterior. Nas suas robustas mãos, quais pás róseas de cinco dedos, trazia um bonito bolo com recheio; farejou freneticamente o ar com o seu simpático focinho e piscou os seus minúsculos olhos depois de ter sido permitida a sua entrada.
- Boa noite, meus senhores. - cumprimentou-nos, sorrindo e voltando a piscar os olhos, que mais não eram que dois exíguos pontinhos negros.
- Boa noite, Madrigueira! - responderam em uníssono. Eu também o havia cumprimentado, mas num tom de voz quase inaudível e tratando-o por Sr. Pitosga Madrigueira.
- Vá! Sentem-se, sentem-se! Aqui não há lugares marcados. Estejam à vontade. - dizia o nosso carinhoso anfitrião enquanto trazia travessas de comida para a mesa.
Havia uma travessa com peixe e nabos assados, guarnecidos com ramos de funcho e salvia, outra travessa com coelho assado, uma gamela com caracóis guisados e outra com os ovos trazidos pelo gineto, entretanto regados com azeite quente e salpicados com salsa picada. Com o Porto, o tinto que eu levara e o licor de medronhos, a pândega estava pronta a ser desfrutada!
Foi, efectivamente, uma jantarada muito agradável. As conversa e boa disposição eram evidentes, relembraram-se peripécias de antigamente, falaram-se acontecimentos recentes e contaram-se anedotas que faziam irromper gargalhadas de todos. O Sr. Pitosga Madrigueira, com as suas grossas lunetas postas desde o início do jantar, pouco se pronunciou, mas acompanhava, com a sua típica essência discreta, as conversas com um sorriso na cara.
Chegada a hora da sobremesa, o Espínhola serviu a iguaria trazida pela toupeira: um bolo de pinhões recheado com compota de minhoca. Serviu uma infusão de hortelã-pimenta e todos nós nos deliciámos, naquela que se acabou por tornar a parte mais calma da noite. E foi precisamente nessa instância que eu tomei conhecimento da história do Sr. Madrigueira.
- Este bolo está absolutamente delicioso! Ainda bem que veio, Madrigueira. - disse o grande sapo de cartola, ainda com a boca cheia.
- Ó Madrigueira, não leve a mal a minha pergunta, mas... - o lagarto-ocelado foi interrompido pelo ouriço-cacheiro:
- O nosso amigo Madrigueira está cá hoje porque achei que merecia um momento de convívio e distracção, tendo em conta aquilo que aconteceu.
Ficámos todos a olhar uns para os outros, sem perceber o que quis ele dizer com aquilo.
- Mas, claro, só o próprio o explicará, se achar que deve. - concluiu o António Espínhola.
Os olhares fixaram-se todos na simpática toupeira.
- Bem... Como sabem, até há pouco tempo eu vivia na zona agrícola, debaixo do campo de uma camponesa que costumava plantar plantas bolbosas. Vivi lá durante muitos anos, sabem? E, durante muitos anos, o esquilo Nogado-Nogueira vinha, a meu convite, almoçar todos os dias a minha casa. Como devem saber, o Nogado sempre foi um ser um bocadinho... Como é que eu hei-de dizer?... Ávido? - contou o Sr. Madrigueira.
- Como assim, "ávido"? - perguntou o gineto, o qual, na verdade, não simpatizava muito com o roedor.
- Ora, o Nogado sempre teve a sua grande provisão de frutos secos na árvore onde vive. E aquela provisão dava para três esquilos sobreviverem a três Invernos seguidos, para vos ser franco. No entanto, para ele, isso não chegava. Por isso, há alguns anos, quando a nossa amizade começou a nascer, ele pediu-me se podia guardar mais frutos secos numa das minhas despensas subterrâneas e, como é óbvio, aceitei de bom grado. Disse-lhe, até, que podia entrar e sair de minha casa à vontade, quando bem lhe conviesse. Enfim, como devem calcular, o Nogado encheu-me uma despensa de tal maneira, que já resultava impossível fechar a porta. Tanto é, que muitos dos seus frutos secos transbordavam da despensa para fora e andavam perdidos pelos meus corredores. - continuou a toupeira.
- Que abuso! - disse o gineto, mas o ouriço Espínhola lançou-lhe um olhar reprovador, como se o estivesse a alertar para não "mandar mais achas para a fogueira".
- Na verdade, amigo - respondeu o Sr. Madrigueira ao gineto -, na altura sempre considerei a presença do Nogado uma companhia muito agradável e, por isso, nunca o tomei por abusador. Mas, claro, como está patente, com o tempo os seres vão-se revelando, não é assim?
- Pode crer, Madrigueira. Pode crer. - anuiu o gineto, com o aceno de cabeça aprovador vindo do pisco-de-peito-ruivo.
- Mas, como eu estava a dizer, a certa altura, as visitas do Nogado à minha despensa começaram a aumentar exponencialmente, até que me pediu se podia começar a encher outra. Como éramos bons amigos, nem pensei duas vezes e disse logo que sim. Não obstante, sempre que passava pelos meus corredores, o Nogado ia roendo as raízes tuberculadas das plantas que a camponesa plantava, coisa que as começou a enfraquecer e, entretanto, levou-as à morte. Escusado será dizer que a camponesa culpou-me da mortalidade das suas hortaliças e expulsou-me dos seus campos. Naturalmente que tive de dar as "más novas" ao Nogado e ele reagiu com uma estranha displicência, como se tivesse sido, de facto, eu o culpado. Perguntei-lhe se ele queria ajuda para mudar as suas provisões de frutos secos, até lhe disponibilizei a minha actual casa, que na altura não a tinha, mas era como se fosse um convite a longo prazo. Ele respondeu-me com um "talvez" e foi-se embora.
- E há quanto tempo é que isso se passou, Sr. Pitosga Madrigueira? - perguntei-lhe.
- Há não mais que dois meses. Entretanto, voltei a vê-lo na zona da minha actual casa e convidei-o para um lanche. Ele recusou...
- Aposto que nem agradeceu. - acrescentou o gineto.
- Infelizmente acertou, amigo. Ele não agradeceu. Mas isso nem me perturbou na altura, para ser honesto. Reparei que ele estava com pressa e, a segui-lo, ia outro esquilo. Provavelmente um novo amigo, ou assim.
- Deve ser um tal de Urbanita Bigodes, um esquilo que o Nogado conheceu na Grande Cidade. - elucidou o pisco-de-peito-ruivo.
- Seja o que for... O Nogado pode ter todos os amigos que ele bem entender, mas sinto que fui usado e, logo a seguir, descartado sem quaisquer precedentes. - concluiu o Sr. Madrigueira, sorvendo um pouco da infusão de hortelã-pimenta.
- Permita-me a frontalidade, Madrigueira, mas, se tivesse sido comigo, eu dava-lhe uma tareia! Abusador de primeira ordem! - rosnou o gineto.
- Eu simplesmente deixava de falar com ele, nem que me cumprimentasse. - sibilou o grande lagarto-ocelado, de olhar indignado.
- Eu chamava-o à razão. Ia ter com ele e esclarecia logo as coisas. Ele até pode nem se ter apercebido do erro que cometeu. É sabido que há esquilos que não dão para mais. - opinou o pisco-de-peito-ruivo.
A pobre toupeira, bombardeada de decisões e perspectivas diferentes, olhava para um lado e para o outro, sem saber o que responder.
- Pobre Nogado... Éramos tão bons amigos. E se ele agora não tem sítio para guardar todas as suas provisões? - indagou a bondosa toupeira.
- O Madrigueira está preocupado com isso? Ele agora que se resolva! - retorquiu o gineto.
- É natural que o nosso amigo Madrigueira esteja a sofrer. Afinal, provavelmente perdeu uma amizade por uma causa alheia aos seus actos. A decisão deve ser dele. - disse o anfitrião, António Espínhola. - Mas, entretanto, fica o Madrigueira a saber que tem, entre nós, um grupo coeso de amigos e, quando precisar de alguma coisa, já sabe com quem pode contar. Como diria a Sra Dona Amélia Mitra, "nunca digas
desta água não beberei". Não sabemos o dia de amanhã. Pode até acender-se uma luzinha na consciência do Nogado...
- É possível. - disse eu.
- Não creio. - disse o gineto.
A verdade, é que ainda não tenho novidades da relação entre o Sr. Madrigueira e o Sr. Nogado, mas acredito que a grande mudança, se é que ela for destinada a existir, deveria vir de quem cujos actos não foram honestos nem bem balançados.
Texto e Ilustração por Pedro Pinho e Suárez (Talpa europaea, toupeira-comum).
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